14/11/2025

STF volta a julgar conflito entre dever de sigilo e direito de autodefesa do advogado

Por: Rafa Santos
Fonte: Consultor Jurídico
Em setembro, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, por unanimidade,
negou agravo regimental do Ministério Público do Paraná contra a decisão que
estabeleceu que o direito de autodefesa do advogado não é absoluto e não
justifica quebra de sigilo profissional. Nesta sexta-feira (14/11), o colegiado, em
sessão virtual, começará a julgar os embargos de declaração apresentados pelo
MP-PR.
A controvérsia teve origem em uma investigação do órgão paranaense sobre a
suposta atuação de uma organização criminosa na concessão de transporte
coletivo urbano em diversas cidades do país, distribuídas em cinco estados e no
Distrito Federal.
O MP-PR identificou fraudes em licitações, desvio de verbas públicas e lavagem
e ocultação de dinheiro, entre outros crimes que teriam sido praticados por
integrantes de um escritório de advocacia, sócios de três empresas de
engenharia, empresários do ramo de transporte coletivo e servidores públicos
municipais. A partir dessa investigação, foram abertas oito ações penais e
firmados dois acordos de delação premiada.
Uma das delações é de um advogado que atuou na defesa da principal empresa
investigada pelo MP-PR. Ele forneceu informações que culminaram no
aditamento da denúncia contra os seus antigos clientes.
A defesa dos delatados questionou o acordo com a alegação de que o advogado
não respeitou o sigilo profissional ao revelar informações que foram obtidas
durante o seu trabalho. O Superior Tribunal de Justiça acolheu esses
argumentos e anulou a delação, determinando ainda que todas as provas dela
derivadas fossem apartadas do processo.
O MP-PR recorreu ao STF com o argumento de que havia um conflito entre o
dever de sigilo e o direito do advogado à autodefesa. O relator da matéria,
ministro Gilmar Mendes, manteve o entendimento do STJ e teve seu voto
acolhido por unanimidade.
O decano do Supremo entende que o advogado não pode testemunhar contra
seus antigos clientes sobre fatos de que tomou conhecimento por causa de sua
profissão. “Em casos como esse, a colaboração premiada não deve ser admitida
porque constitui violação aos direitos da pessoa representada, inclusive do seu
direito de defesa e do direito à assistência jurídica, além de configurar evidente
violação ético-profissional por parte de seu representante jurídico.”
Dever de ofício
O veto à delação do advogado contra seu cliente foi estabelecido pela Lei
14.365/2022, que alterou trechos do Estatuto da Advocacia. Entre as
mudanças, foi acrescentado o parágrafo 6º-I ao artigo 7º, que trata dos “direitos
do advogado”. A nova redação proibiu que causídicos façam delação contra
quem seja ou tenha sido seu cliente. O descumprimento dessa regra resulta em
processo disciplinar previsto no artigo 35 do Estatuto e em crime previsto no
Código Penal.
A decisão do STF, contudo, tratou do conflito entre o direito de autodefesa do
advogado e o dever de sigilo. Uma controvérsia não prevista na lei.
Para a advogada Maíra Salomi, sócia do escritório Salomi Advocacia Criminal,
a decisão do Supremo foi acertada, uma vez que manteve a anulação de um
acordo de colaboração premiada celebrado com violação ao sigilo profissional.
“Aqui nós temos uma proteção, um sigilo que é do advogado, mas que também
é do representado. Então há esse cuidado em proteger esse sigilo em toda e
qualquer situação. O próprio Código de Ética da OAB, nos artigos 25, 26 e 27,
também regulamenta esse sigilo que é estabelecido como inerente à profissão,
e diz que há uma necessidade de guarda desse sigilo em toda e qualquer
situação.”
O criminalista Thúlio Guilherme Nogueira, do Drummond e Nogueira
Advocacia Penal, vai pela mesma linha. Ele destaca que a colaboração premiada,
antes de ser instrumento de defesa, é meio de obtenção de prova.
“Chama a atenção a posição do Ministério Público de defender a validade do
acordo. É evidente que o delator tem direito à autodefesa, mas, nesse caso, ele
termina onde começa o dever de proteger quem se defende. O sigilo entre
advogado e cliente não é um privilégio da classe. É a garantia de que alguém
pode falar livremente com quem o representa”, disse ele. “Imaginem um
sistema em que advogados possam delatar seus clientes. Quem ainda confiaria
em um defensor com base numa alegada ampla defesa? A advocacia deixaria de
ser um espaço de lealdade e passaria a ser um campo de risco.”
Nogueira afirma que a decisão da 2ª Turma colocou o STF na vanguarda ao
impor limites claros ao exercício da advocacia criminal no processo negocial.
“Traduzimos os institutos, mas não os mecanismos de controle. Em países com
cultura negocial consolidada, como os Estados Unidos, há padrões éticos claros
desde 1979.”
Christiany Pegorari Conte, professora de Direito Penal e Processual Penal da
PUC Campinas, diz que permitir uma colaboração premiada “especial” de
advogado contra cliente abriria um precedente para que todo defensor buscasse
benefícios delatando representados, o que enfraqueceria o sistema de garantias
processuais.
“A jurisprudência, e entendo corretamente, prevê apenas hipótese excepcional
de simulação da relação advogado-cliente (por exemplo, quando não há relação
jurídica real de defesa) para admitir colaboração. Essa restrição protege o
sistema.”
Pecado original
O diretor nacional de Prerrogativas da Associação Brasileira de Criminalistas
(Abracrim), Mário de Oliveira Filho, também é favorável ao entendimento do
STF, mas chama a atenção para o “pecado original” que viabiliza a delação de
um advogado contra seu cliente.
“O advogado não pode se envolver na atividade delituosa do seu cliente. Ele
tem de fazer a defesa dentro dos preceitos legais e técnicos. A partir do
momento em que ele passa a fazer parte integrante da ação criminosa do seu
cliente, ele se torna criminoso também. Vale tudo pelo cliente? Não! Vale quase
tudo. No momento em que você tem de transpassar a linha divisória do
exercício da profissão para fazer parte de uma ação criminosa, seja de maneira
física ou intelectual, aí acabou. Está no mesmo balaio de gato.”
O advogado Vinícius Lapetina, sócio do PLS Advogados, tem opinião diversa
dos outros especialistas consultados. “Na minha visão, o direito de defesa,
especialmente na sua dimensão de autodefesa, prevalece sobre qualquer
vedação ou impedimento legal. O advogado que se vê na condição de
investigado ou acusado tem o direito de se defender por todos os meios
disponíveis, ainda que, para tanto, acabe por incriminar um cliente”.
Ele argumenta que a Lei 14.365/2022, ao vedar expressamente a delação
premiada de advogado contra cliente, estabelece um limite ético e processual
relevante. “Ao vedar expressamente a delação premiada de advogado contra
cliente, a lei estabelece um limite ético e processual relevante. Contudo, é
possível sustentar que o conteúdo de eventual colaboração premiada prestada
pelo advogado, embora não possa produzir efeitos jurídicos contra o cliente
delatado, deve ser considerado em favor do próprio delator, uma vez que este
utilizou o instrumento penal como forma de exercer seu direito de defesa”.
Já Welington Arruda, mestre em Direito pelo IDP, defende que, mesmo com
a anulação da delação, o advogado delator deve ser alvo de processo
administrativo. “Mesmo com a delação anulada no processo, isso não impede a
responsabilização na OAB. A nulidade no processo penal não apaga a infração
ética. Quebrar sigilo e atuar contra o cliente é violação grave do Estatuto e do
Código de Ética, passível, sim, de punição disciplinar”.
RE 1.547.659